SÓCIOS
Setembro 2024

Caso clínico do mês – Setembro 2024
 
Título: Um caso de hemorragia digestiva: quando a persistência é a chave diagnóstica
 
Autores: Rita Ribeiro1, Alda Andrade1, Isabel Tarrio1, Tarcísio Araújo1, Luís Lopes1,2,3
1Departamento de Gastrenterologia, Hospital de Santa Luzia, ULS Alto Minho, Viana do Castelo
2Life and Health Sciences Research Institute (ICVS), School of Medicine, University of Minho, Braga
3ICVS/3B’s - PT Government Associate Laboratory, Braga/Guimarães
 
Descrição do caso:
Mulher de 86 anos, com antecedentes de hipertensão arterial, fibrilhação auricular (hipocoagulada com dabigatrano), doença renal crónica 3b e anemia ferropénica (hemoglobina basal de 10.5 g/dL). Dois internamentos no último ano por anemia agravada e melenas, sem identificação de foco hemorrágico nos estudos endoscópicos (incluindo videocápsula). Admitida no serviço de urgência (SU) por novo quadro de melenas, sem outras queixas do foro gastrointestinal associadas. Negava consumo de anti-inflamatórios não esteroides.
Ao exame objetivo, encontrava-se hipotensa (TA 88/47 mmHg), normocardica, com palidez mucocutânea, sem sinais de má perfusão periférica e abdómen indolor à palpação. Analiticamente, apresentava agravamento da anemia (hemoglobina 9.1 g/dL), ureia/creatinina 237/1.46 mg/dl e INR 1.45. Perante o quadro clínico, foi realizada endoscopia digestiva alta que não mostrou evidencia de hemorragia ativa ou recente.
Posteriormente, e ainda durante a permanência no SU, apresentou hematoquézias abundantes, com queda do valor de hemoglobina para 6.5 g/dL, tendo efetuado transfusão de duas unidades de glóbulos vermelhos. Admitida na Unidade de Cuidados Intermédios para vigilância e estudo, onde manteve hematoquézias e necessidade de suporte transfusional. Realizou colonoscopia com ileoscopia tendo-se observado sangue em todos os segmentos cólicos bem como no íleon terminal (percorrido por cerca de 30 cm), contudo sem se identificar o foco da hemorragia.

 
  
 
Figura 1 - Colonoscopia com ileoscopia: presença de sangue em todos os segmentos cólicos (A) e no íleon terminal (B)
De seguida, foi efetuada angiografia por tomografia computadorizada, que não evidenciou hemorragia ativa no trato gastrointestinal. Pela suspeita de hemorragia digestiva com ponto de partida no intestino delgado, realizou videocápsula endoscópica que revelou presença de sangue vivo no íleon terminal/cego. Tendo em conta o local de hemorragia, foi realizada nova colonoscopia, que desta vez permitiu identificar um coágulo aderente à mucosa do colon ascendente, que após a lavagem se destacou e revelou a seguinte lesão:
 
 Vídeo 1 - Lesão da mucosa observada na colonoscopia
 
Qual é o diagnóstico mais provável desta doente?
a. Angiectasia
b. Hemangioma
c. Lesão de Dieulafoy
d. Neoplasia
e. Hemorragia diverticular
 
Discussão do caso:
A colonoscopia permitiu identificar uma Lesão de Dieulafoy cólica com hemorragia ativa em toalha, controlada após colocação de três clips sobre o vaso. Após o procedimento, a doente apresentou evolução clínica e analítica favorável, com estabilidade do valor de hemoglobina e sem recidiva de hemorragia digestiva.
A Lesão de Dieulafoy é uma causa pouco frequente de hemorragia gastrointestinal, sendo responsável por apenas 1 a 2% de todos os casos. Corresponde a uma artéria tortuosa de grande calibre (1 a 3 mm de diâmetro) localizada na camada submucosa e que se projeta através da mucosa, podendo complicar com hemorragia de grande volume, indolor, intermitente e recorrente, sobretudo em doentes com doenças cardiovasculares, hipertensão arterial ou doença renal crónica.

A sua localização é mais comum no fundo gástrico (a 6 cm da junção esofagogástrica), contudo pode ser observada em qualquer parte do trato gastrointestinal, sendo rara no colón (em 2% dos casos). A apresentação clínica pode variar entre anemia ferropénica, hematemeses, melenas ou hematoquézias (dependendo da sua localização e do tempo de trânsito cólico), tipicamente não precedidas ou acompanhadas por outros sintomas gastrointestinais. Endoscopicamente, apresenta-se como um vaso protuberante rodeado por mucosa normal (com ou sem hemorragia). Contudo, o seu diagnóstico pode ser desafiante na presença de sangue a preencher o lúmen ou, pelo contrário, na ausência de um vaso visível ou de hemorragia ativa onde a mucosa pode apresentar um aspeto normal. O tratamento endoscópico de eleição consiste na combinação da injeção de adrenalina seguida de hemostase mecânica ou térmica (sucesso hemostático em 95% dos casos). Contudo, a recidiva não é infrequente.

Este caso é descrito pela sua raridade e desafio diagnóstico. Embora rara, a Lesão de Dieulafoy do cólon deverá ser um diagnóstico a considerar perante a suspeita de hemorragia digestiva baixa.
 
Referências:
- Feldman M., Friedman L. S., & Brandt L. J. (2021). Sleisenger and Fordtran's gastrointestinal and liver disease - pathophysiology, diagnosis, management. Elsevier. ISBN: 978-0-323-60962-3
- Khan S., Niaz S., et al. Dieulafoy lesion of the colon: a rare finding during colonoscopy. Cureus, 2022. DOI: 10.7759/cureus.25188
- Paccos J., Mukai N., et al. Dieulafoy lesion in the colon: a rare cause of lower gastrointestinal bleeding. Endoscopy 2021; 53: E313–E314. DOI 10.1055/a-1270-6655