SÓCIOS
Março 2025

Caso clínico do mês – Março 2025
 
Fístula colovesical na doença diverticular – relato de um caso clínico

Autores: Ana Moreira1, Daniela Lira1, Maria Costa1, Vítor Francisco1, Filipe Ribeiro1 e Joana Noronha2
1- Serviço de Cirurgia Geral, Unidade Local de Saúde da Região de Aveiro (ULSRA)
2 – Diretora do Serviço de Cirurgia Geral da ULSRA
 
Caso clínico:
Doente do sexo masculino, 52 anos, com antecedentes pessoais de asma, medicado com brometo de ipatrópio e budesonida + formoterol e com alergia à penicilina.
Apresentou episódio de diverticulite aguda (Hinchey Ia modificada, WSES Ia) tratado de forma conservadora em julho de 2021, ainda no rescaldo da pandemia por COVID-19. Após resolução do quadro agudo, realizou colonoscopia cinco meses depois, confirmando a presença de divertículos no cólon sigmóide, sem outras alterações. Assintomático, manteve vigilância.
 
Durante o ano de 2024, apresentou episódios recorrentes de disúria com idas aos cuidados de saúde primária e SU, diagnosticados como cistites por Escherichia coli, com resolução após vários ciclos de antibioterapia. Contudo, o aparecimento de pneumatúria motivou o seu encaminhamento para as consultas de Urologia e Cirurgia-Coloproctologia da ULSRA, por suspeita de fístula colovesical. Nas consultas não se objetivaram outras alterações clínicas e foram solicitados exames complementares de diagnóstico.
 
Perante a suspeita de fístula colovesical, qual exame complementar de diagnóstico escolheria como primeira linha?
  1. Ecografia abdominal.
  2. RMN pélvica.
  3. TC pélvica.
  4. Colonoscopia.
 
Embora a cistoscopia e cistografia retrógrada não revelassem trajetos fistulosos, a TC pélvica com contraste retal mostrou passagem de contraste do cólon sigmóide para a bexiga, objetivando a presença de uma fístula colo-vesical (figuras n.º 1 e nº. 2). Foi realizada nova colonoscopia, que confirmou a presença de divertículos do sigmóide, sem sinais inflamatórios nem identificação de orifícios fistulosos ou lesões colorretais.

 
 
Figura n.º 1 e n.º 2 – TC pélvica: evidência de fístula colo-vesical (seta) com passagem de contraste do sigmóide para a bexiga assim como presença de ar no lúmen da bexiga.
 
Perante um doente sem comorbilidades relevantes, foi proposto tratamento cirúrgico. Paralelamente, em consulta de Urologia, foi instituída antibioterapia profilática com Nitrofurantoína até à realização do procedimento.
 
Qual tratamento cirúrgico optaria neste doente?
  1. Cirurgia de Hartmann.
  2. Abordagem em tempo único por laparotomia: sigmoidectomia, anastomose primária e cistectomia parcial com encerramento primário.
  3. Abordagem em tempo único por laparoscopia: sigmoidectomia, anastomose primária e cistectomia parcial com encerramento primário.
  4. Abordagem em dois tempos cirúrgicos por laparotomia: sigmoidectomia com anastomose primária, cistectomia parcial com encerramento primário, estoma de derivação e encerramento do estoma à posteriori.
 
O doente foi submetido a sigmoidectomia com anastomose primária e cistectomia parcial com encerramento primário (figuras n.º 3 e n.º 4). A cirurgia e o pós-operatório decorreram sem intercorrências, tendo alta ao 5º dia. O exame anatomopatológico confirmou a presença de doença diverticular do cólon sigmóide sem sinais de malignidade, assim como a existência da fístula colovesical. Em consulta de seguimento, o doente encontrou-se assintomático e sem complicações, tendo removido a sonda vesical 10 dias após a cirurgia.
 
Figura n.º 4 e n.º 5 – Evidência intra-operatória de fístula colo-vesical.
 
Discussão:
A fístula colovesical (FCV) é uma comunicação patológica entre o cólon e a bexiga, trata-se do tipo de fístula enterovesical mais comum e apresenta maior prevalência em homens na quinta e sexta década de vida1. Embora seja uma complicação rara da doença diverticular (entre 1% a 4%)2,3, estima-se que esta seja responsável por 65% a 79% dos casos de fístula colovesical1,2,6. Outras causas menos comuns de FCV são malignidade, doença de Crohn, lesão iatrogénica e trauma. O mecanismo subjacente acredita-se estar relacionado com a extensão direta da perfuração de um divertículo ou erosão da parede da bexiga provocada por um abcesso peridiverticular3.

O diagnóstico de uma fístula colovesical pode representar um verdadeiro desafio. Os sinais e sintomas manifestam-se como infeções urinárias de repetição ou bacteriúria assintomática, embora esta seja uma patologia do foro intestinal. A presença de pneumatúria e fecalúria são considerados achados patognomónicos.

Os exames complementares de diagnóstico permitem confirmar o diagnóstico de FCV e orientar o seu tratamento. A cistoscopia permite a identificação do orifício da fístula ou de sinais indiretos como edema com eritema e úlceras, no entanto vários estudos demonstraram a identificação da fístula em apenas 35% a 46% dos casos 2,3,4,5. A cistografia pode mostrar contraste fora da bexiga, no entanto tem uma baixa percentagem de deteção da fístula estimada em 20 a 30%2,3. A colonoscopia é essencial para excluir malignidade e deve ser realizada previamente ao tratamento cirúrgico, embora apresente uma percentagem de identificação da FCV estimado em apenas 55%2,3. Segundo a American College of Radiology, a TC pélvica trata-se do exame de eleição e apresenta uma sensibilidade estimada de 94%, para além de auxiliar no planeamento cirúrgico4. A realização de ressonância magnética pode ser considerada na identificação da FCV com sensibilidade e especificidade de cerca de 100%, no entanto é um exame menos comumente disponível 1,3.

 O tratamento das FCV é maioritariamente cirúrgico e pode ser desafiante devido ao processo inflamatório inerente que distorce os planos anatómicos, tornando a dissecção notoriamente difícil. O tratamento conservador pode ser considerado em doentes com risco cirúrgico elevado, assintomáticos ou com sintomatologia mínima e pode incluir nutrição parentérica, antibioterapia, corticoterapia, imunomoduladores e algaliação crónica, dependendo da patologia subjacente2,3,4,6,7. Contudo, esta abordagem apresenta uma elevada morbimortalidade.

O tratamento cirúrgico pode envolver uma abordagem em vários tempos ou abordagem em tempo único com cirurgia de ressecção e anastomose primária, sendo esta última a técnica recomendada na maioria dos doentes por apresentar uma morbimortalidade baixa e permitir uma melhor qualidade de vida1,6,7

Atualmente, uma abordagem em dois tempos cirúrgicos (primeira intervenção com ressecção com anastomose primária e estoma de derivação temporário, seguida de encerramento do estoma) tem sido adotada em doentes debilitados, processos inflamatórios importantes ou se dúvidas na integridade da anastomose primária5,6,7. Vários autores enfatizam também a abordagem minimamente invasiva (por laparoscopia ou cirurgia assistida por robot) quando realizada por cirurgiões experientes, por apresentar uma morbilidade baixa com evidências crescentes que apoiam a sua exequibilidade e segurança6,7.

A abordagem vesical intra-operatoriamente varia consoante as condições locais. Pode ser necessário cistectomia parcial com encerramento primário, embora defeitos pequenos possam cicatrizar espontaneamente1,2,6. A omentoplastia pode também ser considerada embora não haja estudos suficientes sobre a sua eficácia. A cateterização vesical deve manter-se durante 5 a 15 dias após a cirurgia para garantir uma cicatrização adequada. A realização de cistografia para confirmar a cicatrização eficaz não está recomendada por rotina1.

Na generalidade dos casos, os resultados cirúrgicos são bons com taxas de recorrência baixas, principalmente em doentes com FCV por etiologia diverticular.

Neste caso clínico, apresentamos um doente com sintomatologia clássica de fístula colovesical, com presença de pneumatúria após vários episódios de infeção urinária e com doença diverticular do colón sigmóide. Inicialmente, sem identificação da fístula em exames complementares de diagnóstico, como cistoscopia, cistografia retrógrada e colonoscopia concordante com as taxas de deteção de FCV descritas por estas técnicas na literatura. Optou-se por uma abordagem cirúrgica em tempo único com resseção cólica e anastomose primária, associada a cistectomia parcial e encerramento primário, visto tratar-se de um doente sem comorbilidades, com bom estado nutricional e sem eventos intraoperatórios que o contraindicassem.
 
 
Referências Bibliográficas:
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