Infeção refratária por Clostridioides difficile em doente com colite ulcerosa – A importância do microbioma intestinal
Fábio Pereira Correia, Sofia Bragança, Joana Carvalho Branco, Luís Carvalho Lourenço, Liliana Santos, Ana Maria Oliveira, David Horta
Serviço de Gastrenterologia, Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca
CASO CLÍNICO
Uma mulher de 29 anos com o diagnóstico de colite ulcerosa (CU) esquerda desde 2021, em remissão sob terapêutica com salicilatos (2g/dia), recorreu ao serviço de urgência (SU) por quadro de diarreia com sangue (6 dejeções/dia). Realizou retossigmoidoscopia que mostrava mucosa com apagamento do padrão vascular, edema, hiperémia e microerosões dispersas – subscore endoscópico de Mayo 2. Analiticamente sem alterações de relevo e pesquisa de antigénio de Clostridioides difficile positiva, mas toxina e PCR negativas. Assumida CU agudizada de gravidade moderada, tendo tido alta para consulta após otimização da dose dos salicilatos. As biópsias do cólon viriam a mostrar aspetos compatíveis com colite ulcerosa em fase ativa, sem evidência de infeção por Citomegalovírus. Por persistência das queixas, a doente recorreu novamente ao SU ao fim de três dias, tendo repetido pesquisa de antigénio e toxina de C. difficile que foram positivas.
Tendo em conta estes resultados, qual a abordagem a seguir?
1. Repetir retossigmoidoscopia para avaliação da presença de pseudomembranas
2. Iniciar antibioterapia endovenosa com vancomicina
3. Iniciar antibioterapia oral com metronidazol
4. Iniciar antibioterapia oral com vancomicina ou fidaxomicina
A doente ficou internada e iniciou terapêutica com vancomicina oral, que cumpriu durante 10 dias, com normalização das características e número das dejeções. Quatro dias após o fim da terapêutica, a doente foi reinternada por recorrência do quadro com pesquisa de toxina de C. difficile positiva (1ª recorrência). Nessa fase optou-se por tratamento com fidaxomicina (10 dias) e otimização da terapêutica da CU com budesonida MMX e enemas de budesonida, com resposta adequada. Uma semana após a alta, a doente desenvolveu novo quadro de diarreia com sangue com mais de 8 dejeções/dia (sem cumprir critérios de colite aguda grave). Repetiu retossigmoidoscopia com achados sobreponíveis aos anteriores. A pesquisa da toxina de C. difficile foi novamente positiva (2ª recorrência). Foi iniciada terapêutica com vancomicina oral em esquema tapered and pulsed, contudo sem resposta clínica.
Perante esta falência terapêutica, qual a abordagem adequada?
1. Adicionar metronidazol e enemas de vancomicina ao esquema anterior
2. Repetir ciclo de fidaxomicina
3. Transplante de microbiota fecal
4. Colher amostra de fezes para teste de sensibilidade a antibióticos
Assumindo-se refratariedade à terapêutica, optou-se por realização de transplante de microbiota fecal (TMF) com instilação de aproximadamente 200 mL de fezes (figura 1) por via retrógrada. Verificou-se uma melhoria rápida após o procedimento, com normalização das características das fezes 48h após TMF.
Figura 1. Fezes utilizadas no transplante de microbiota fecal
Teve alta ao 3º dia após transplante fecal sob terapêutica com salicilatos e budesonida MMX (que havia começado previamente). Três semanas depois, a doente apresentou a 3ª recorrência de infeção por C. difficile, motivo pelo qual foi submetida a 2º TMF. Endoscopicamente mantinha alterações compatíveis com um subscore de Mayo 2. Após discussão em reunião de DII foi decidido também o início de corticoterapia sistémica. A doente evolui favoravelmente, sem recidiva no follow-up a 6 meses.
DISCUSSÃO
A incidência de infeção por Clostridioides difficile é maior em doentes com DII do que na população geral, apresentando um risco cumulativo de infeção de 10% ao longo da vida. Nesse grupo de doentes, a infeção tende a apresentar características atípicas, nomeadamente a ausência de história prévia de antibioterapia, a afeção de idades mais jovens, infeção com início na comunidade (ao invés de nosocomial) e a menor frequência de pseudomembranas na colonoscopia. Essas características atípicas juntamente com o facto de a apresentação poder ser muito semelhante a um flare de DII, tornam o diagnóstico desafiante neste subgrupo de doentes. Dessa forma é essencial que em todas as agudizações de DII seja excluída a infeção através da pesquisa da toxina de C. difficile. A necessidade do diagnóstico precoce é justificada pelos outcomes adversos que estão associadas à infeção – maior risco de hospitalizações, escalada terapêutica e colectomia. Em cada agudização da DII deve ser repetido o rastreio, já que nesse grupo de doentes o risco de recorrência é alto.
A abordagem terapêutica da infeção por C. difficile na DII pode ser complexa e envolve frequentemente vários dilemas, que incluem a escolha da antibioterapia, o timing e a necessidade de escalar/descalar terapêutica imunossupressora. Atualmente, os fármacos de primeira linha para o primeiro episódio de infeção a Clostridioides difficile são a vancomicina oral e a fidaxomicina, que também estão preconizados para a primeiro recorrência. A partir da 2ª recorrência devem ser considerados esquemas antibióticos mais prolongados e o TMF.
O TMF consiste na transferência de fezes de um dador saudável para um paciente portador da infeção. É considerado uma alternativa eficaz e segura no tratamento da infeção recorrente e refratária pelo C. difficile, tanto na população geral como em doente com DII. A técnica utilizada no TMF não está totalmente padronizada, de modo que os protocolos diferem entre os vários centros. A seleção dos dadores é feita através de uma história clínica exaustiva e de um extenso rastreio analítico e fecal. O recetor deve fazer um pré-tratamento com vancomicina ou fidaxomicina (geralmente durante 4 dias) até ao dia anterior ao TMF. A administração das fezes depende da preferência local e das características do doente, podendo ser feita por via anterógrada, através de cápsulas ou sonda nasoentérica, ou por via retrógrada, através de enemas ou instilação direta por colonoscopia. Atualmente não existe consenso sobre qual a via de administração mais eficaz. Apesar destas variáveis, estudos recentes demonstram taxas de eficácia que atingem os 90%, contudo sendo frequentemente necessário mais que um procedimento para atingir a cura da infeção, particularmente nos doentes com DII.
BIBLIOGRAFIA
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