SÓCIOS
Março 2023

CASO CLÍNICO DO MÊS

Título: De figurante a papel principal – Angiografia na abordagem da hemorragia digestiva baixa
Autores: João Pedro Pereira1, Paulo Salgueiro2
Filiações:
1 -Serviço de Gastrenterologia, Hospital Pedro Hispano
2- Serviço de Gastrenterologia, Centro Hospitalar Universitário de Santo António

Caso clínico
Homem de 45 anos, sem comorbilidades ou medicação crónica, seguido em consulta externa de gastrenterologia por hemorragia digestiva obscura manifesta caracterizada por episódios auto-limitados de hematoquézias, recorrentes (cerca de 6 episódios por ano), com necessidade transfusional, com cerca de 10 anos de evolução, sem outros sintomas acompanhantes. Sem alterações ao exame proctológico.
Do estudo complementar realizado salienta-se: valor médio de hemoglobina 10,5g/dL, com valor mínimo de 4,9 g/dL; a Endoscopia digestiva alta, Ileocolonoscopia, videocápsula endoscópica e a enterografia por tomografia computorizada não revelaram alterações patológicas. Por diagnóstico não esclarecido, foi realizada pesquisa de divertículo de Meckel por cintigrafia que foi negativa, contudo foi efetuada pesquisa de hemorragia digestiva com glóbulos vermelhos marcados com Tc-99m que revelou hemorragia com origem no cólon ascendente (Figura 1). De seguida, foi repetida colonoscopia que, novamente, não revelou qualquer alteração.

Relativamente à abordagem a um doente com hemorragia digestiva baixa aguda, indique a falsa:
-As comorbilidades e medicação habitual são dados importantes na avaliação destes doentes.
-A colonoscopia é o exame de 1ªlinha num doente com estabilidade hemodinâmica.
-Num caso de hemorragia digestiva baixa aguda major é recomendada a realização de colonoscopia precoce/urgente (<24h) tendo em conta que melhora o prognóstico.
-Não é recomendada a realização endoscopia digestiva baixa sem preparação intestinal.
-Num doente com instabilidade hemodinâmica e evidência de hemorragia gastrointestinal ativa a angiografia por tomografia computorizada é o exame de 1ª linha.
Nesta caso, qual o diagnóstico mais provável?
>Hemorragia diverticular
>Hemorragia por doença hemorroidária
>Malformações vasculares (Angiodisplasias)
>Colite isquémica
>Lesão de Dieulafoy

Cerca de 7 meses depois, o doente recorreu novamente ao serviço de urgência em contexto de hemorragia digestiva aguda (hematoquézias), com necessidade transfusional mas sem instabilidade hemodinâmica. Tendo em conta à investigação previamente realizada, procedeu-se à realização de estudo angiográfico que revelou uma lesão compatível com angiodisplasia ao nível do colón ascendente, próximo ao ângulo hepático do cólon, no território da artéria cólica direita (Figura 2). Após a cateterização seletiva de ramo colateral da artéria cólica direita ocorreu embolização da arteríola imediatamente proximal à malformação vascular (Figura 3) com consequente tratamento da mesma. Por ausência de intercorrências o doente teve alta ao 4º dia após o procedimento.
Aos 10 anos de follow-up após a terapêutica angiográfica o doente permanece assintomático, sem evidência de recidiva hemorrágica, com valores normais de hemoglobina.

Discussão:
A hemorragia gastrointestinal obscura (HGO) é definida por uma hemorragia evidente ou oculta de origem desconhecida, que persiste ou recorre após endoscopia e colonoscopia sem achados patológicos. Representa aproximadamente 5% das hemorragias do tubo digestivo, sendo a maioria causada por hemorragia no intestino delgado, onde as angiectasias representam a causa isolada mais comum.

A HGO constitui frequentemente um desafio diagnóstico, exigindo o recurso a outras armas diagnósticas nomeadamente a videocápsula endoscópica, a enteroscopia e a angiografia por tomografia computorizada.
Relativamente à hemorragia digestiva baixa (HDB), as principais causas por ordem decrescente são a hemorragia diverticular e a doença hemorroidária, seguidas das malformações vasculares, colites (por ex. isquémica) e o cancro colo-retal. A abordagem inicial do doente deverá incluir: uma anamnese com as comorbilidades e medicação habitual; monitorização de sinais vitais; exame físico (com toque rectal) e estudo analítico. Em caso de estabilidade hemodinâmica, a colonoscopia deverá ser o exame de 1ªlinha, uma vez que permite, simultaneamente, diagnosticar e tratar o foco de hemorragia. É importante ainda referir que, tendo em conta que em grande parte dos casos de HDB a origem da hemorragia está localizada proximalmente ao reto e cólon sigmóide, a ileocolonoscopia deverá ser o objetivo. As recomendações atuais recomendam que a realização endoscopia digestiva baixa deverá ser realizada apenas após a realização de preparação intestinal.

Nos casos de hemorragia digestiva baixa aguda major, não existe evidência robusta que demonstre que a realização de colonoscopia precoce/urgente (<24h) influencie o prognóstico dos doentes, pelo que deverá ser recomendada a sua realização durante o internamento.

O caso apresentado evidencia o papel crescente e cada vez mais precoce da angiografia no algoritmo de abordagem diagnóstica e terapêutica da hemorragia digestiva baixa bem como nos casos de hemorragia recorrente onde a fonte hemorrágica não foi identificada por meio complementares diagnósticos menos invasivos. Segundo as recomendações da Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal, nos doentes com HDB aguda e instabilidade hemodinâmica, a angiografia por tomografia computorizada deverá ser o exame 1ªlinha no intuito de localizar a origem da hemorragia. A evidência tem apontado para uma elevada sensibilidade (79-95%) e especificidade (95-100%) da angiografia no diagnóstico de hemorragia digestiva baixa, sendo que, tal como se verificou neste caso, a sua sensibilidade é significativamente maior na presença de hemorragia ativa.

Figuras:

 

 

 


 

 

Figura 1. Pesquisa de hemorragia digestiva (com eritrócitos marcados com Tc-99m) traduzindo perda hemática com origem no trato gastrointestinal baixo (cólon ascendente).

 

Figura 2. Angiografia da artéria mesentérica superior: visualiza-se lesão, compatível com angiodisplasia, ao nível do colón ascendente, próximo ao ângulo hepático do cólon (com extravasamento de contraste no território da artéria cólica direita).

 

 

 

 

 

 

Figura 3. Cateterização seletiva da artéria cólica direita confirmando-se presença de extravasamento de contraste dependente de colateral da artéria cólica direita (à esquerda). Embolização do ramo cólico imediatamente proximal à malformação vascular com consequente tratamento da mesma (à direita).

Referências bibliográficas:
>Sey M, Yan BM, et al. Optimal management of the patient presenting with small bowel bleeding. Best practice & research. Clinical gastroenterology vol. 42-43 (2019): 101611.
>Shiratori, Yasutoshi et al. Timing of colonoscopy in acute lower GI bleeding: a multicenter retrospective cohort study. Gastrointestinal endoscopy vol. 97,1 (2023): 89-99.e10.
>Triantafyllou, Konstantinos et al. Diagnosis and management of acute lower gastrointestinal bleeding: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) Guideline. Endoscopy vol. 53,8 (2021): 850-868.