CASO CLÍNICO DO MÊS
O valor da história clínica em casos de proctite aguda
Bárbara Morão1, Catarina Gouveia1, Joana Torres1, Luísa Glória1
1Serviço de Gastrenterologia, Hospital Beatriz Ângelo
Um homem de 47 anos, natural de Portugal, recorreu ao serviço de urgência por quadro com cerca de 7 meses de evolução caracterizado por obstipação de novo (1 dejeção a cada 3 dias), com fezes em fita, tenesmo, falsas vontades, associado a hematoquézias de sangue vermelho vivo (não misturado com as fezes) e perda ponderal não quantificada. Negava anorexia, dor abdominal ou história de diarreia atual ou no passado. Tinha antecedentes de ex-toxicodependência (cocaína) e história de uretrite há cerca de 1 ano tratada com azitromicina (juntamente com a sua parceira sexual). Negava relações anais recetivas, parceiros sexuais múltiplos ou viagens recentes.
Ao exame objetivo apresentava adenopatias inguinais e um abdómen doloroso à palpação da fossa ilíaca esquerda, sem sinais de irritação peritoneal, e um toque retal doloroso, com esfíncter normotónico e dedo de luva com sangue vivo e vestígios fezes castanhas, sem muco ou pús. Analiticamente sem anemia, leucocitose, ou trombocitose, com PCR 3.07mg/dL; função renal, ionograma e provas hepáticas normais; HIV e VDRL negativos. A TC abdominal e pélvica com contraste endovenoso revelou um espessamento parietal do reto, com captação de contraste, com densificação da gordura meso-retal, sem adenopatias suspeitas. A retossigmoidoscopia revelou, desde a linha pectínea até aos 15cm da margem do ânus, uma mucosa hiperemiada, friável e extensamente ulcerada com úlceras profundas com bordos elevados; a mucosa do cólon sigmoide e descendente não apresentava alterações. Foram realizadas biópsias dos bordos e fundo de úlcera.
Qual o diagnóstico mais provável?
1) Proctite a herpes simplex
2) Linfogranuloma venéreo
3) Doença de Crohn
4) Linfoma
5) Carcinoma do canal anal
Resposta certa: Linfogranuloma venéreo
No segimento do caso, as biópsias do reto revelaram um intenso infiltrado inflamatório linfoplasmocitário, com grande número de neutrófilos e criptite, sem alterações arquitecturais das criptas ou abcessos de cripta; o estudo imunohistoquímico não revelou microorganismos. Contudo, a pesquisa de DNA de Chamydia trachomatis no exsudado retal foi positiva. As serologias de Herpes simplex e Citomegalovírus foram negativas (IgG positivo), assim como a pesquisa de DNA de Neisseria gonorrhoeae no exsudado retal. O doente foi medicado com doxiciclina durante 21 dias com rápida melhoria clínica, juntamente com a parceira.
O linfogranuloma venéreo é uma infeção sexualmente transmissível provocada pela Chlamydia trachomatis (serovars L1, L2 e L3) que pode afetar a orofaringe, o trato urogenital (como causa de uretrite) e gastrointestinal. Apesar de ser uma causa rara, nos últimos anos têm sido reportados casos crescentes de linfogranuloma venéreo como causa de proctite em países desenvolvidos, estando fortemente associado a coito anal receptivo sobretudo no sexo masculino1. A infeção ano-retal aguda é caracterizada por tenesmo, dor, hematoquézias e obstipação. A proctite a Chlamydia trachomatis pertencente a outros serovars (D a K, não associados a linfogranuloma venéreo) é geralmente assintomática.
O diagnóstico requer um elevado nível de suspeição uma vez que a clínica, exames de imagem e achados endoscópicos e histológicos podem mimetizar várias patologias benignas e malignas como doença inflamatória intestinal e neoplasias do reto1,2. A pesquisa de DNA de Chamydia trachomatis é o meio de diagnóstico preferencial, devendo ser utilizado o exsudado retal nos casos de infeção anoretal1. O diagnóstico precoce é essencial para iniciar o tratamento de forma atempada e prevenir complicações como estenose anal, soiling, dor, obstipação e megacólon1. Perante casos suspeitos de proctite infeciosa com apresentação grave, deve ser iniciada antibioterapia empírica com doxicilina e ceftriaxone para cobrir infeção por Chlamydia trachomatis e Neisseria gonorrhoeae, podendo ser associado aciclovir ou valaciclovir na suspeita de proctite herpética (lesões vesiculares perianais)3. É também fundamental para interromper a cadeia de transmissão da doença, devendo ser realizado o rastreio de outras doenças sexualmente transmissíveis e recomendado manter a abstinência sexual durante o tratamento e testar e tratar os parceiros sexuais dos últimos 6 meses.
Referências
1De Vrieze NHN, De Vries HJC. Lymphogranuloma venereum among men who have sex with men. An epidemiological and clinical review. Expert Rev Anti Infect Ther. 2014;12(6):697-704.
2Pimentel R, Correia C, Estorninho J, et al. Lymphogranuloma Venereum-Associated Proctitis Mimicking a Malignant Rectal Neoplasia: Searching for Diagnosis. GE Port J Gastroenterol. 2022;29(4): 267–272.
3Hamlyn E, Taylor C. Sexually transmitted proctitis. Postgrad Med J. 2006 Nov; 82(973): 733–736.