CASO CLÍNICO DO MÊS
HAMARTOMA CÍSTICO RETRO-RETAL: RELATO DE CASO CLÍNICO
Autores: Dias da Silva S.1; Moreira A.1, Francisco V.1; Martins M1; Sousa J.1; Noronha J1,2.
1 – Serviço de Cirurgia Geral do Centro Hospitalar do Baixo Vouga (CHBV)
2 – Diretora do Serviço de Cirurgia Geral CHBV
CASO CLíNICO:
Doente género feminino, 64 anos. Autónoma. Antecedentes médico-cirurgicos: LIFT por fistula perianal (há 10 anos); AVC lacunar sem sequelas há 10 anos; Síndrome Metabólico; Hipotiroidismo. Medicação habitual: clopidogrel, telmisartan, atorvastatina, levotiroxina, fluoxetina, diazepam, pantoprazol.
Encaminhada à consulta de Cirurgia através do seu médico de família por desconforto retal. No toque retal foi identificada a presença de abaulamento entre os 3 e os 6 cm da margem anal, em posição de litotomia, na parede posterolateral, com mucosa retal integra, sem outras alterações de relevo.
Tendo em conta o caso clínico, quais os exames complementares de diagnóstico que optaria?
A – Ressonância Magnética
C- Colonoscopia
D- Biópsia da lesão
E- Todas as anteriores com exceção da biópsia
Efetuada colonoscopia total com evidência de abaulamento extrínseco da parede posterior do reto, a cerca de 6 cm da margem anal.
Realizou Ressonância Magnética pélvica (Figura 1 e 2 ):
Tendo em conta os achados radiológicos e clínicos nesta doente:
Foi proposto tratamento cirúrgico que a doente aceitou e foi efetuada a resseção cirúrgica pela via de Kraske (Figura 3,4 e 5).
A cirurgia e o internamento decorreram sem intercorrências e a doente teve alta ao 5º dia de pós-operatório. O resultado da Anatomia Patológica revelou hamartoma quístico retrorretal, com excisão completa. Consulta de seguimento sem sinais ou sintomas de recidiva aos 6 meses.
DISCUSSÃO
Em função da presença no espaço retro-retal de estruturas embriológicas como o intestino posterior, o neuroectoderma e precursores dos ossos pélvicos, torna-se possível a formação, nesse espaço, de tumores benignos e malignos de natureza histopatológica diversa (1).
A classificação geral dos tumores retro-retais compreende: lesões embriológicas, neurológicas, ósseas e miscelânias (2).
Os cistos embriológicos do espaço retro-retal classificam-se em: cistos dermóides, cistos epidermóides, cistos neuroentéricos e cistos entéricos (2).
Fig 6: Ilustração anatómica de um tumor pré-sagrado em relação com o espaço pré-sagrado. O espaço pré-sagrado é delimitado pelo reto e mesorreto anteriormente, pela fáscia pré-sagrada posteriormente, pelo músculo elevador do anus inferiormente e pela reflexão peritoneal superiormente (A), e pelos vasos ilíacos e ureteres lateralmente (B). Figura adptada de Dozois e Marcos (3)
Os cistos embriológicos são as lesões congênitas mais comuns do espaço retro-retal. Dentre os tumores malignos, os cordomas são o tipo histológico mais frequente. Em crianças, o teratoma cístico é a lesão mais comum. (7)
A persistência de vestígios embriológicos da chamada "cauda intestinal" (tailgut) dará origem aos hamartomas císticos, também conhecidos como cistos do intestino posterior ou "tail gut cyst". (4)
Por serem lesões raras não é objetiva a sua incidência e a sua prevalência. (2,5,7)
Os diagnósticos diferenciais dos hamartomas císticos são: cisto de duplicação retal, cisto dermóide, cisto epidermóide sacrococígeo, meningocele sacral anterior, cistos de glândulas anais, endometrioma, leiomiossarcoma retal necrótico, linfangioma cístico, abscesso piogênico, cisto neurogênico e cordoma sacral necrótico.
Em estudo retrospectivo por Glasgow et al, o endometrioma foi o diagnóstico inicial mais comum de lesões retro-retais. (2)
Os hamartomas císticos, apresentam-se habitualmente como achados e são mais comuns em mulheres de meia-idade. (6,7)
Quando atingem dimensões significativas, os hamartomas causam sintomas relacionados com o efeito de massa, nomeadamente mal-estar anal, desconforto retal, sintomas de evacuação incompleta, dor lombar e/ou sacral. (1,7)
A principal complicação dos hamartomas císticos é a infecção (30-50%), com formação de abscessos e fístulas, sendo que, nestes casos, a fístula não apresenta orifício interno ao nível da linha pectínea. (1,6,7)
A transformação maligna dos cistos entéricos é estimada em 7%. (9)
A retossigmoidoscopia e a colonoscopia podem mostrar compressão extrínsica do reto e são frequentemente pedidos quando existem sintomas do foro digestivo.
A TAC é um exame importante de diagnóstico e frequentemente o primeiro exame pedido (1,6,7).
A RMN além do diagnóstico, permite caracterizar a lesão reto-retal em termos de dimensões, localização e relações de vizinhança. É importante para o diagnóstico e para o planeamento da abordagem cirúrgica. Os achados imagiológicos da RMN determinam imagens císticas, bem delimitadas, posteriores ao reto e/ou canal anal, com plano de clivagem entre eles e multilobuladas na maioria dos casos. (1,7)
A ultrassonografia endoretal pode ser útil. A existência de "debris" inflamatórios Intra lesionais não favorecem o diagnóstico de hamartoma cística e podem sugerir lesões malignas. (1)
A realização de biópsias diagnósticas é muito controversa, devido ao risco de contaminação, meningite, sangramento da artéria sacral, e disseminação de lesões malignas. (1,2,7,8)
O tratamento dos hamartomas císticos é cirúrgico, prevenindo-se com esta atitude complicações como infecção e compressão nervosa. A exérese da lesão fará o diagnóstico definitivo de benignidade. (1,2,5,6,7)
A localização dos hamartomas císticos no espaço anatómico retro-retal possibilita mais de uma abordagem cirúrgica. A via de acesso deve ser decidida conforme a localização, o tamanho da lesão e a proximidade das estruturas adjacentes.
A abordagem por via de Kraske é uma abordagem segura e fiável para exérese de lesões retro-retais que se localizam desde o cóccix até ao sacro, podendo haver resseção do coccix em caso de necessidade. (7)
CONCLUSÃO
Em cerca de 50% dos doentes o hamartoma quístico apresenta-se como um achado incidental no exame físico ou exame de imagem. A RM é o exame com maior sensibilidade para o diagnóstico e é importante para o planeamento cirúrgico. Recomenda-se a ressecção cirúrgica da lesão independentemente do tamanho e da presença ou não de sintomas, devido ao risco de infeção local, de formação de abscessos e ao potencial de malignização.
Neste caso clínico podemos constatar que a via de Kraske foi uma boa opção de tratamento com resseção completa da lesão e tendo a doente assim obtido a cura completa.
BIBLIOGRAFIA
1- FERNANDES GO, MANGUEIRA PA, PRIMO CC, FRANÇA MAV, COSTA JHG. Hamartoma Cístico Retro-retal: Relato de 2 casos e revisão da literatura. Rev bras Coloproct, 2006;26(2):178-186.
2 – Habr-Gama A, Vieira MJF, Marchan LA, Rodriguez JA, Sousa Jr AHS, Jatobá PP et al . Tumores retro-retais no adulto.Descrição de cinco casos. Rev Bras Coloproct. 1986; 6(1):28-36
3- ( Figura 6 ) - Dozois EJ, Marcos MDH, et al. Presacral Tumors. 2nd ed. In: The ASCRS Textbook for Colon and Rectal Surgery, editorBeck DE, Robert PL New York:Springer Science & Business Media (2011).
4-Dahan H, Arrivé L, Wendum D, le Pointe HD, Tubiana JM. Retrorectal developmental cysts in adults: Clinical and radiologic-histopathologic review, differential diagnosis, and treatment. RadioGraphics. 2001;21:575-584.
5 - Jao SW, Beart RW Jr, Spencer RJ, Reiman HM, Ilstrup DM. Retrorectal tumors. Mayo Clinic experience, 1960-1979. Dis Colon Rectum (1985) 28(9):644–52. doi: 10.1007/BF02553440
6- Garcia-Aguilar J. Retrorectal tumors. Am Soc Col Rect Surg. 2001- Care Subjects. Available from: URL: http:// www.fascrs.org/displaycommon. cfm?an=4
7- . Setton, L.F. Okida, F. Yang, A. Ghuman, J.J. Nogueras, Retrorectal tumors: a 10-year single-institution experience. J. Am. Coll. Surg., 231 (October (4)) (2020), p. S67
8 - G. La Greca, G. Trombatore, G. Basile, P. Conti. Retrorectal tumors: case report and review of literature. Int. J. Surg. Case Rep., 77 (2020), pp. 726-729
9- Glasgow S.C., Birnbaum E.H., Lowney J.K. Retrorectal tumors: a diagnostic and therapeutic challenge. Dis. Colon Rectum. 2005;48:1581–1587.