SÓCIOS
Novembro 2023

ARTIGOS DO MÊS
 
Em 2010, o aumento da prevalência da doença inflamatória intestinal em Portugal, foi cientificamente comprovado, pela publicação do seguinte artigo:

L. F. Azevedo, F. Magro, F. Portela, P. Lago, J. Deus, J. Cotter, I. Cremers, A. Vieira, P. Peixe, P. Caldeira, H. Lopes, R. Gonçalves, J. Reis, M. Cravo, L. Barros, P. Ministro, M. Lurdes, A. Duarte, M. Campos, L. Carvalho e A. Costa-Pereira. Estimating the prevalence of inflammatory bowel disease in Portugal using a pharmaco-epidemiological approach. Pharmacoepidemiol Drug Saf. 2010 May;19(5):499-510.

Desde então, na actividade clínica quotidiana, tenho a impressão empírica que a incidência e prevalência destas doenças, em especial da doença de Crohn, não param de crescer, e parece-me assistir ao seu surgimento em idades cada vez mais precoces.
Felizmente temos acumulado conhecimento científico e experiência clínica que nos permite tratar estes doentes com taxas de sucesso muito superiores e oferecer uma qualidade de vida incomparavelmente melhor.
Todavia, se a Medicina fosse qualificada segundo a sua capacidade de erradicar doenças, a sua avaliação na doença de Crohn seria fraca.

Penso poder afirmar que avançámos mais no tratamento da doença do que no seu conhecimento.
Sabemos que resulta de uma interacção complexa entre susceptibilidade genética, factores ambientais e alteração da microbiota intestinal [J. Torres et al. Crohn's disease. Lancet. 2017 Apr 29;389(10080):1741-1755].
Falta-nos saber quais os genes, os factores ambientais e a microbiota intestinal que estão envolvidos e de que forma interagem. 

Esta interacção será necessariamente mediada por factores imunitários. E sendo a doença de Crohn mais frequente nos países “ocidentais”, colocaria como hipóteses mais prováveis na etiologia da doença, a hiper-esterilização do meio, o processamento dos alimentos e talvez a utilização de antibióticos. 
Penso que são estes os factores que mais nos distinguem das outras culturas, uma vez que a poluição ambiental não parece acompanhar a demografia desta doença.
 
 José Assunção Gonçalves

O artigo selecionado é referente à publicação dos resultados finais do U-ACHIEVE Maintenance, um ensaio clínico de fase 3, randomizado, controlado e duplamente cego, que pretendeu avaliar a eficácia e a segurança do upadacitinib como terapêutica de manutenção na colite ulcerosa moderada a grave. 
 
Foram incluídos 681 doentes, com idade compreendida entre 16 e 75 anos, que tinham respondido clinicamente (redução do Score de Mayo adaptado ≥2 pontos em relação ao nível basal e ≥30% do baseline, mais uma diminuição no subscore de sangue nas fezes ≥1 ou um subscore de sangue nas fezes ≤1) à fase de indução de 8 semanas, com terapêutica com upadacitinib 45mg 1xdia. Os doentes foram realocados aleatoriamente (1:1:1), placebo (n=223), upadacitinib 15 mg/dia (n=225) e upadacitinib 30mg/dia (n=233) e seguidos por 52 semanas. A remissão clínica (Score de Mayo adaptado definido como subscore de nº de dejeções ≤1 e não maior do que no início do estudo, subscore de sangue nas fezes =0 e subscore endoscópico ≤1) foi o endpoint primário.

Dos resultados apresentados destaca-se a significativa superioridade do upadacitinib face ao placebo nos seguintes endpoints:
- remissão clínica: placebo 10,8%, upadacitinib 15 mg 40,4% e upadacitinib 30mg 53,6%;
- remissão endoscópica (Mayo 0 ou 1 sem friabilidade): placebo 6,1%, upadacitinib 15 mg 24,9% e upadacitinib 30mg 28,3%;
- resolução da dor abdominal: placebo 20,6%, upadacitinib 15 mg 45,8% e upadacitinib 30mg 59,7%;
- resolução da urgência defecatória: placebo 18,4%, upadacitinib 15 mg 53,8% e upadacitinib 30mg 66,9%;
 
De notar que 52% dos doentes do grupo placebo e 48% dos doentes dos grupos de upadacitinib tinham previamente apresentado uma resposta inadequada/perda de resposta ou intolerância a pelo menos 1 biológico (desses, mais de 60% com falência a pelo menos 2 biológicos). O upadacitinib demonstrou ser eficaz nos endpoints clínico, endoscópico e histológico neste subgrupo de doentes. A taxa de resposta manteve-se igualmente elevada no subgrupo dos bioexperimentados, apresentando o upadacitinib 30 mg uma eficácia superior.
 
A análises de segurança incluiu 746 doentes (33% de doentes com pelo menos 50 anos de idade e 9% com 65 anos ou mais anos; 56% apresentava pelo menos um fator de risco cardiovascular (evento cardiovascular prévio 7%, HTA 15%, diabetes 6%, tabagismo 41% e baixos níveis de HDL 14%). Dos efeitos adversos reportados verificou-se:

- que os  efeitos adversos em geral e os efeitos adversos que levaram à descontinuação do fármaco foram mais frequentes no grupo placebo (placebo n=28 vs upadacitinib 15 mg n=24 vs upadacitinib 30mg n=22 e placebo n=26 vs upadacitinib 15 mg n=11 vs upadacitinib 30mg n=19, respetivamente);
- herpes zoster: placebo n=0, upadacitinib 15 mg n=12 e upadacitinib 30mg n=16 ;
- neoplasias (incluindo neoplasia da pele não melanoma): placebo n=1, upadacitinib 15 mg n=1 e upadacitinib 30mg n=5;
- alterações hepáticas: placebo n=8, upadacitinib 15 mg n=34 e upadacitinib 30mg n=20;
- 2 eventos adversos cardiovasculares major: 1 enfarte do miocárdio não fatal (grupo placebo) e 1 hemorragia subaracnoideia (grupo upadacitinib 30mg);
- 4 eventos venosos tromboembólicos:  2 embolismos pulmonares (grupo upadacitinib 15mg) e 2 tromboses venosas profundas (grupo upadacitinib 30mg).
 
A análise preliminar deste estudo, com 474 doentes, foi publicada em 2022. Os resultados finais, que este estudo apresenta, incluem 681 doentes,  e validam o perfil risco-benefício favorável do tratamento de manutenção com upadacitinib na colite ulcerosa moderada a grave. O upadacitinib é significativamente mais eficaz do que o placebo nos endpoints clínico, endoscópico e histológico. Quanto ao perfil de segurança, este estudo envolveu um grande número de doentes (n=746), destacando a ocorrência de eventos adversos cardiovasculares major semelhante ao placebo. Todavia, nos grupos do upadacitinib as infeções por herpes zoster e os eventos venosos tromboembólicos mantém-se superiores ao placebo.
 
O upadacitinib já está aprovado para a terapêutica da colite ulcerosa moderada a grave mas o seu posicionamento no algoritmo de tratamento carece de uma melhor definição. De notar que, o upadacitinib apresenta várias características que o tornam uma opção muito atrativa: toma oral uma vez por dia; rápido inicio de ação e rápido alívio dos sintomas (dor abdominal, urgência defecatória, diarreia e retorragia) e resolução da fadiga; a cicatrização da mucosa e normalização histológica; elevada eficácia nos doentes bio-naïves e nos doentes refratários a vários biológicos, suspensão precoce de corticoides e baixo risco de imunogenicidade.
 
As meta-análise em rede publicadas recentemente sugerem com base em comparações indiretas que o upadacitinib é a terapêutica de indução e manutenção mais eficaz para a colite ulcerosa moderada a grave, independentemente da prévia exposição a outras terapêuticas biológicas. Contudo, são necessários estudos de vida real head-to-head para clarificar e confirmar esses resultados. Não obstante, quando o placebo é utilizado como comparador, os dados apontam para a superioridade terapêutica do upadacitinib, com um bom perfil de segurança. O upadacitinib é um fármaco seguro e o único evento adverso claramente associado a este, face aos demais, é o herpes zoster, o qual pode ser mitigado com a vacina disponível para o efeito e que deve ser oferecida por prática clínica aos doentes.
 
Várias questões permanecem sem resposta, nomeadamente, a utilização em diferentes subgrupos de gravidade nomeadamente na colite ulcerosa aguda severa, nos doentes com manifestações extra-intestinais e a avaliação do perfil de segurança a longo prazo.
 
Sandra Barbeiro