Marco Pires, MD1; Ana Povo, MD, PhD2,3,4
(1) Serviço de Cirurgia Geral, Departamento de Cirurgia, CHUdSA, Porto, Portugal
(2) ICBAS-UP – School of Medicine and Biomedical Sciences, Porto, Portugal
(3) Academic Clinical Center ICBAS – CHUdSA, Porto, Portugal (
4) Serviço de Cirurgia Geral de Ambulatório, Departamento de Cirurgia, CHUdSA, Porto, Portugal
Apresentamos o caso uma doente de 53 anos, autónoma, nuligesta, com antecedentes pessoais conhecidos de adenocarcinoma do reto, submetida em 2001 a resseção anterior do reto (RAR) com ileostomia de proteção (posteriormente encerrada), seguida de quimioterapia e radioterapia (alta da consulta externa em 2007, sem evidência de recidiva); síndrome depressivo (medicada com venlafaxina). A destacar ainda antecedentes cirúrgicos de laqueação de varizes dos membros inferiores e colecistectomia laparoscópica por litíase vesicular sintomática.
Referenciada em 2016 de novo a CE Cirurgia Geral por queixas de incontinência fecal passiva, urgência fecal, de agravamento progressivo, associada a fezes de consistência pastosa/líquida, sem dificuldade na evacuação, com múltiplos episódios por dia. Ao toque retal apresentava contração do esfíncter anal ausente, hipertonia do canal anal, reflexo anal ausente e diminuição da sensibilidade sagrada, fezes moles no dedo de luva. As análises incluindo marcadores tumorais, tomografia computorizada toraco-abdomino-pélvica e colonoscopia total apresentavam-se sem alterações compatíveis com recidiva de doença.
Qual o diagnóstico mais provável?
1. Proctite rádica
2. Colite induzida pela QT
3. Síndrome pós-Resseção Anterior do Reto (LARS)
4. Síndrome de Supercrescimento Bacteriano no Intestino Delgado (SIBO)
A presença de um amplo espetro de sintomas, como o aumento da frequência de dejeções, evacuações repetidas e dolorosas, dificuldades de esvaziamento, incontinência fecal, urgência fecal ou evacuação que resulta em dependência da casa de banho ou impacto no bem-estar mental, social e relacionamentos pessoais, é denominada Síndrome pós-Ressecção Anterior do Reto (LARS). A prevalência é difícil de estimar devido à ampla variedade de sintomas e à dificuldade de diagnóstico, embora com o desenvolvimento de uma ferramenta - LARS score – estima-se que 50% dos pacientes desenvolverão sintomas graves no pós-operatório. Alguns fatores de risco reconhecidos incluem radioterapia, quimioterapia, distância do tumor até a borda anal, excisão total do mesorreto, denervação local, fibrose, leak anastomótico e ileostomia de proteção.
Perante este diagnóstico, que atitude tomar?
1. Propor uma colostomia
2. Gerir as expectativas fazendo-a perceber que não há alternativas terapêuticas
3. Avaliação multidisciplinar e step-up approach (medidas dietéticas, comportamentais, farmacológicas, reabilitação do pavimento pélvico, PTNS, etc…)
4. Propor a implantação de um neuromodulador sagrado
Uma vez que a etiologia multifatorial do LARS não está totalmente esclarecida, o tratamento tem sido baseado no controlo sintomático. Não existe uma abordagem gold-standard protocolada. Na literatura há estudos que avaliaram as opções terapêuticas, baseadas naquilo que se conhece para a incontinência fecal, como a reabilitação do pavimento pélvico, irrigação transanal, antagonistas 5-HT3, probióticos, estimulação do nervo tibial e ainda a neuromodulação sagrada.
A doente foi então avaliada em consulta de Fisiatria e discutida em consulta multidisciplinar. Apresentou refratariedade a todos os tratamentos realizados, incluindo, reabilitação do pavimento pélvico, medidas farmacológicas e estimulação do nervo tibial. Neste caso, e após apresentação em reunião multidisciplinar num Centro com experiência em SNM, foi proposta a implantação de um neuromodulador sagrado.
A SNM foi inicialmente descrita na incontinência fecal em 1994 e consiste na implantação de um dispositivo (elétrodo) conforme descrito por Matzel et al.
Após uma fase de teste (4 semanas) com melhoria em >50% dos episódios de incontinência fecal, foi decidida a implantação do neuromodulador definitivo. Atualmente mantém melhoria clínica acentuada, com uma média de 1 episódio de perda involuntária por semana.
Com este caso pretendemos alertar para a importância do reconhecimento do LARS, que muitas vezes é subdiagnosticado, ora por se poder desenvolver anos mais tarde (e após a alta do doente da consulta de Cirurgia), ora por vergonha dos doentes, em vencer o estigma social da incontinência e partilharem com os seus médicos aquilo pelo qual estão verdadeiramente a passar. Isto pode gerar tremenda ansiedade e quadros depressivos, e surge aqui também a importância do trabalho multidisciplinar, na gestão de expetativas e na esperança de que há tratamentos com eficácia comprovada que são certamente uma mais-valia e a tábua de salvação destes doentes. A mochila dos produtos de higiene íntima não é certamente o maior peso que estes carregam.
https://www.facebook.com/reel/956690719006457
Referências
1. C. Keane et al., “International consensus definition of low anterior resection syndrome.,” ANZ J Surg, vol. 90, no. 3, pp. 300–307, 2020, doi: 10.1111/ans.15421.
2. K. J. Emmertsen and S. Laurberg, “Low anterior resection syndrome score: Development and validation of a symptom-based scoring system for bowel dysfunction after low anterior resection for rectal cancer,” Ann Surg, vol. 255, no. 5, pp. 922–928, May 2012, doi: 10.1097/SLA.0b013e31824f1c21.
3. R. Sun, Z. Dai, Y. Zhang, J. Lu, Y. Zhang, and Y. Xiao, “The incidence and risk factors of low anterior resection syndrome (LARS) after sphincter-preserving surgery of rectal cancer: a systematic review and meta-analysis.,” Support Care Cancer, vol. 29, no. 12, pp. 7249–7258, Dec. 2021, doi: 10.1007/s00520-021-06326-2.
4. A. Dulskas, E. Smolskas, I. Kildusiene, and N. E. Samalavicius, “Treatment possibilities for low anterior resection syndrome: a review of the literature,” International Journal of Colorectal Disease, vol. 33, no. 3. Springer Verlag, pp. 251–260, Mar. 01, 2018. doi: 10.1007/s00384-017-2954-x.
5. National Collaborating Centre for Acute Care (Great Britain), Faecal incontinence : the management of faecal incontinence in adults. National Collaborating Centre for Acute Care (UK), 2007.
6. K. E. Matzel, U. Stadelmaier, M. Hohenfellner, and F. P. Gall, “Electrical stimulation of sacral spinal nerves for treatment of faecal incontinence.,” Lancet, vol. 346, no. 8983, pp. 1124–7, Oct. 1995, doi: 10.1016/s0140-6736(95)91799-3.
7. K. E. Matzel et al., “Sacral Neuromodulation: Standardized Electrode Placement Technique.,” Neuromodulation, vol. 20, no. 8, pp. 816–824, Dec. 2017, doi: 10.1111/ner.12695.
8. K. E. Matzel, “Sacral nerve stimulation for faecal incontinence: its role in the treatment algorithm.,” Colorectal Dis, vol. 13 Suppl 2, pp. 10–4, Mar. 2011, doi: 10.1111/j.1463-1318.2010.02519.x.